Acordei, mas não abri os olhos. Queria acreditar que os acontecimentos do dia anterior haviam sido apenas um terrível sonho. Logo perdi as esperanças, quando senti o cheiro de um cadáver semidecomposto ao meu lado. Eu realmente estava no cativeiro onde fui posto no dia anterior. Não sei bem como eu cheguei lá, nem mesmo onde era lá. Só sabia que estava com muita fome e uma incessante vontade de flatular.
Tentei abri os olhos, mas uma fortíssima conjuntivite bacteriana impediu-me de fazê-lo. O que sucedeu-se foi apenas uma curta frase no silêncio de minha solidão:
– Riariariariaria aloco, conjuntivite, mano.
Em outro lugar da cidade, em um lugar onde a riqueza e a prosperidade imperavam, meu pai, aflito, procurava por seu caderno de telefones.
Ele abriu a gaveta de sua mesinha de cabeceira com força, e de lá retirou um pequeno e desgastado caderno. A capa de couro marrom evidenciava a sua avançada idade, tendo em vista todos os arranhões e o pequeno rasgo no canto superior direito. Meu pai abriu o caderno com impaciência na letra ‘F’, e foi folheando-o até que chegasse à letra ‘Q’. Ele pegou o telefone e, apressadamente, digitou o único número que se via na página. O telefone tocou uma, duas, três vezes. Uma voz rouca e feminina arranhou um “alô” quase moribundo do outro lado da linha. Meu pai respondeu-o sem nem fazer uso das normas da etiqueta, dadas as circunstâncias. Minutos depois, ele desligava o telefone e já discava outro número, mas que, dessa vez, já ocorria-lhe de memória.
Enquanto o teleone chamava, meu pai pensava no plano que havia bolado juntamente com Querêncio Ortalhame, interlocutor da ligação anterior. Era simples e, afinal, perder mais que o vinte e cinco milhões de unidades monetárias do país local exigidos pelo meu resgate seria impossível. Caixa de mensagens. Querêncio Ortalhame era um ex-policial. Ele foi afastado da polícia após reagir a um assalto e, acidentalmente, matar uma criança de apenas seis meses. Ele rediscou o número e uma segunda voz feminina, dessa vez muito mais delicada (apesar de ainda poder ser comparada a uma chuva de rinocerontes com dor na juntas) atendeu:
– Alô?
– Dona Carmen?
– É eu – respondeu a “moça” desconfiada.
– Aqui quem fala é Triptilocasio Jofreciêncio, que mora aqui no número 56 da Rua do Limoeiro, lembra-se?
– Mas como poderia me esquecer do meu melhor criente? – Ela perguntou. – Vai querer bagulho de quanto hoje? Tem de 5, tem de 10 e tem hidropônico. Qual vai ser?
– Não, Dona Carmen, hoje quero só um Estadão. Na realidade, gostaria de saber apenas quanto custa o menor espaço possível no obituário do Estadão.
– Ah... – Estranhou a “mulher” – esse daí tá vinte e cinco milhões de unidades monetárias do país loca. Mais impostos.
– Impostos?! – Pensou o Sr. Triptilocasio Jofrenciêncio – Muito obrigado, Carmen. Beijo-tchau! – Ele agradeceu.
Decidiu então que, já que não sairía mais barato o pagamento de um obituário, ele colocaria em prática seu plano.
Uma hora depois, lá estava ele, juntamente com Querêncio Ortalhame, à espreita à porta de um Itaú Personalitè, observando o descarregamento do carro-forte. Quando surgiu a primeira oportunidade de entrar no carro, os dois o fizeram. Trancaram as portas blindadas, deram a partida, e fugiram. Ao sair da garagem do banco, o telefone de meu pai tocou. Era um número desconhecido. Ao atender, constatou que a voz era a do sequestrador, que havia falado com ele horas antes. Ele exigia os vinte e cinco milhões de unidades monetárias do país local, e disse que se não as possuísse até as 18h, mandaria, embrulhado em um papel de presente de coraçõezinhos roxos sobre um fundo amarelo, os meus testículos. Tudo bem, ainda eram 17h, e não levaria muito tempo. Meu pai se manteve na linha o maior tempo que pôde, para que seu programa identificador de chamadas pudesse rastrear, por GPS, de onde vinha a ligação. Ela vinha do alto de uma favela não muito longe dali.
Em trinta minutos, lá estavam os dois, na porta do barraco o qual o GPS indicava. Com um chute na maçaneta, derrubou a porta de compensado e olhou para dentro do barraco. Os dois sequestradores encontravam-se atônitos, sentados à mesa do chá da tarde. O líder levantou-se e disse:
– Desculpe-me senhor, mas apenas entregarei seu filho mediante o pagamento de vinte e cinco milhões de unidades monetárias do país local.
Sem responder nada, meu pai empunhou sua espada e, com um único e certeiro golpe, decapitou ambos os bandidos.
Ao chegar nos fundos do barraco, abriu uma porta de madeira que continha uma meia-lua entalhada na parte superior. Lá dentro, me viu. Em um primeiro momento, tanta luz me cegou. Passados alguns minutos eu já estava com a visão perfeita. FIquei aliviado ao constatar que o cheiro de defunto era, na realidade, apenas um generoso pedaço de fezes, grande e roliço, a poucos metros de mim.
Ao chegar em casa, decidimos presentear, com vinte e cinco milhões de unidades monetárias do país local, Querêncio Ortalhame, que apesar de não ter feito nada, era amigo da família há décadas, estava com a casa hipotecada e tinha dezesseis filhos para criar (seriam dezessete, se anos antes ele não houvesse acidentalmente matado o caçula, quando tentara reagir a um assalto).
Depois do descrito, nossa família, farta da violência da cidade, mudou-se para uma outra, onde a incidência de corintianos era muito menor.